Desejo não é pecado

“Amor é o desejo irresistível de ser irresistivelmente desejado.” (*Robert Frost)

terça-feira, 10 de maio de 2011

Tranças


Nota: Trata-se de um conto, porém como já é sabido que a interpretação de texto não é lá muito o forte do brasileiro, fato comprovado por pesquisas da área educacional, é sempre bom lembrar que ficção pode ou ser somente pura ficção ou pode levar um pouco de imaginação misturada à realidade. Eu sempre gosto da segunda opção quando não há fronteiras entre o sonho e a verdade, quando não se sabe onde começa a realidade e onde termina a ficção. O verdadeiro significado estará sempre nas entrelinhas. Boa leitura.

Apesar de ter quase sete bilhões de habitantes e uma superfície de aproximadamente 510 milhões de quilômetros quadrados,  quando encontramos alguém por acaso, o mundo parece um lugar pequeno. Distraído, porque estou sempre perdido em meus pensamentos, não notei que a pessoa atrás de mim da fila era uma velha conhecida. Foi ela me perguntar às horas e nossos olhos se cruzarem que nos lembramos que nossos rostos eram familiares.
- Eu te conheço de algum lugar!
- Eu também estou com essa mesma sensação
- Ah já sei! Foi da universidade! – A moça tinha um ar de alegria por ter encontrado alguém daqueles velhos e bons tempos.
- É verdade, fizemos algumas matérias juntos, eu estou me lembrando agora, estávamos até no mesmo grupo de estudo sobre Economia Chinesa. – Além de ter me lembrado do grupo de trabalho, me lembrei também que havia me sentido atraído por ela naquela época, mas nada demais, coisa de homem que se sente atraído pelo perfume de uma fêmea, por seus cabelos, seu modo de falar e de andar, mas que não investe muito por já ter outras opções mais “fáceis” ou paqueras que já tinham evoluído um pouco mais.
- Pois é, que bom te encontrar, o que está fazendo da vida? – Um encontro inesperado é sempre algo interessante, serve para você se atualizar com relação às pessoas que saíram do seu ciclo de amizades e para elas se lembrarem de você, como diria meu antigo chefe, “quem não é visto, não é lembrado
- Estou trabalhando numa empresa de comercio exterior, viajando muito por aí a trabalho, e blá, blá,blá – Atualizei todos os meus dados pra ela, empresa onde estava trabalhando, cidade onde morava, viagens, amigos, família, só não tinha dito se estava solteiro ou casado.Ela por sua vez me atualizou seu perfil também, e foi quando ela fez a próxima pergunta:
- E aí já casou? E filhos já têm? – Fiquei analisando se aquela pergunta era mera curiosidade ou se estava abrindo alguma porta, sabe como homem é, mesmo que ele não faça nada, seja fiel, faz bem pro ego saber do interesse de alguém por si. Agora se o cara for mulherengo basta a oportunidade...
- Já casei e descasei, ainda não tive filhos – Disse isso numa boa, olhando bem pros olhos dela, fui sincero como nem sempre se deve ser. A essa altura já tinha reparado que ela tinha ficado bem mais bonita, usava pequenos brincos, anéis nos dedos, braceletes nos pulsos e tinha belíssimas tranças no cabelo. E aí foi a vez dela contar:
- É, eu também já fui casada, tenho uma filha desse relacionamento, infelizmente não deu certo, mas somos amigos – Tinham se passado 10 anos desde a ultima vez que eu tinha visto aquela moça, numa década acontece muita coisa na vida de uma pessoa, mas é impressionante a nossa capacidade de resumo, talvez porque alguns acontecimentos chave já sejam suficientes para contar nossa história em poucos minutos.
A fila andou e eu fui atendido pelo caixa numero 2. Em seguida ela foi atendida pelo caixa numero 5. Terminamos quase ao mesmo tempo o atendimento. Convidei-a para um café, mas ela disse que teria que recusar, estava em horário de almoço e tinha que voltar logo:
- Mas guarda meu telefone aí no seu celular, que eu vou guardar o teu, qualquer hora nos ligamos ou mandamos uma mensagem, daí marcamos esse café, sempre é bom reencontrar velhos amigos, colocar o papo em dia. Foi um prazer rever você. – Nos despedimos com sorriso nos lábios e beijo no rosto. Tenho que confessar que uma mulher educada, com classe, não por uma suposta aristocracia, mas pelos seus modos mesmo, pela sua forma doce e delicada de interagir e de se comunicar, conquistam um homem. As mulheres já deveriam ter entendido que ou elas fascinam um homem ou o atraem. Para atrair um homem é mais fácil, basta encurtar as saias, tornar os decotes mais generosos, usar roupas mais justas, remexer os quadris e ter um ar sensual. Mas para fascinar um homem a mulher precisa de mais que seu próprio corpo, ela precisa de sua inteligência, de seu charme, de sua educação e de seu carisma. Um homem atraído é mais fácil de se dominar, mas também a trairá mais facilmente, um homem fascinado se liga de uma maneira mais lenta, porém quando ela gosta em pouco tempo ama, e se amar vai amar mais fielmente. E por tudo isso numa questão de minutos o que antes, uma década atrás, era atração, agora tinha virado fascinação. Ela não era dessas mulheres lindas, de “fechar o comércio” ou que chama a atenção por onde passa.Mas tinha uma outra coisa e é justamente essa outra coisa que não atrai, porém, fascina.
No final do expediente pensei em mandar um SMS, mas antes de mandar a mensagem bateu uma insegurança, afinal ela poderia só ter sido educada e tal, isso deveria fazer parte do modus operandi dela, ou seja, ela “deve ser assim com todo mundo”, pensei. Então naquele dia não mandei SMS e nem liguei. Na verdade já tinha meio que desistido. Passou quase uma semana quando vibrou meu celular, era um SMS dela: “Disponível para um café ?” Dei risada, adoro esse mundo onde vivo, povoado por mulheres feministas da terceira onda,  mulheres que não são oferecidas, mas que vão a luta quando é preciso.Entretanto podia ser um equivoco meu, amizade, amizade, amizade, repeti pra mim mesmo como um mantra para não me frustrar ou criar falsas expectativas com relação a moça.
- Eu adoro cappuccino, mas nem sempre tomo para não enjoar -  Enquanto conversamos eu estava me lembrando de quando a conheci na Universidade.Ela sentava sempre na frente, fazia perguntas interessantes nas aulas, nenhum dos caras da turma a achava bonita, ela na verdade era discreta, estava lá pra estudar e não pra paquerar. Usava óculos, agora precia estar usando lentes.
- Você trabalha no quê? Gosta do que faz? – O processo de conhecer alguém é interessante, é como descascar uma cebola inteira, você começa pela casca e daí vai retirando camada por camada e sempre, sempre te faz chorar, a cebola arde os olhos e as pessoas têm sempre uma história dramática pra te contar.
- A minha ex-mulher adoeceu, vivemos alguns anos juntos, mas ela se foi por causa de uma doença grave – O café durou algumas horas, tínhamos combinado depois do expediente, contei essa história triste da minha vida pra ela e nem sabia por que, tinha gente muito próxima de mim que jamais soube disso. Ela me viu ficar emocionado e ela se emocionou também, acho que naquele momento se estabeleceu um laço, um vínculo.
- No inicio foi dolorido, imaginava que nunca mais sairia daquele estado de dor e de depressão que fiquei depois de sua morte – Contar a respeito do fato mais marcante da minha vida tinha sido sempre uma barreira, mas inexplicavelmente eu resolvi contar para aquela conhecida, que era quase uma estranha pra mim, mas uma estranha perfeita para aquela situação.
- Mas o tempo foi me curando e imagino que ela em outra dimensão estava me ajudando a esquecê-la - O lance espiritual dessa história me deixou abalado anos e anos e naqueles minutos olhando pra aquela moça de tranças estava ao mesmo tempo abrindo e curando uma ferida que eu julgava não existir mais. A vida nos surpreende, o que é bom porque enquanto ela surpreender é porque ainda temos tempo de vida e motivo para ter esperanças.
- Daí, amei de novo outras pessoas e hoje ela é só uma boa lembrança. – Tinha tirado dos ombros toneladas e mais toneladas de peso.
- Eu me separei do meu ex-marido por falta de diálogo, de carinho, de incompreensão, tentamos por nove anos, mas não deu certo, primeiro tentamos porque acreditávamos no amor que sentíamos dos tempos de namoro. No inicio viajamos muito juntos.Conversávamos sobre várias coisas, mas com o tempo tudo ao invés de se consolidar foi se arrefecendo – Ela contava essa história com tristeza, mas a maneira como ela contava era linda, há beleza na tristeza, eu consigo ver isso porque acho que um fato doloroso do nosso passado sempre pode ser restituído.Só não pode se a pessoa gostar de ser sofredora e se reconhecer assim.Não era o caso dela.
- Depois tentamos continuar juntos por causa da construção de nossos sonhos, nossas carreiras no inicio, muitos projetos em comum, o apartamento financiado, os carros financiados, o nascimento de nossa filha, as novas amizades das pessoas casadas como nós. Mas tudo ia aos poucos se descolorindo. – Nesse momento ela estava linda, ela era a mulher mais triste do mundo e a mais linda da terra. Ela contava algo comum a milhões de casais, um amor que não dura, um amor que vacila e que vai morrendo aos poucos, mas que não mata os amantes. Embora os machuque.
- E o último motivo pelo qual ficávamos juntos era por causa do desejo que sentíamos um pelo outro, desde o inicio o sexo entre nós era bom, mas passou a não ser mais, inexplicavelmente,  mas talvez tenha sido pela raiva que passei a sentir dele por não me ouvir, por não me amar como eu o amava, passei a sentir nojo dele, até que não transávamos mais. Isso foi o inicio do fim e nem a filha em comum conseguiu salvar nosso casamento – Poucas vezes eu tinha estado diante de mim alguém tão sincera, tive vontade de beijá-la, de acariciar suas tranças, ah que belas tranças ela tem em seus cabelos que a fazem ser uma menina linda num corpo de uma mulher madura. Mas não podia tocá-la assim tão explicitamente. Mesmo assim instintivamente nos abraçamos, forte, bem forte, quase um abraço desses de urso. Acho que foi nesse momento que se estabeleceu entre nós uma aliança, uma ligação, acho que mais, um reconhecimento um no outro de um sentimento. Acolhemos-nos mais do que nos abraçamos pra dizer ao certo. Porém tanto eu como ela sabíamos do desafio que era integrar uma vida a outra e nada deveria ser de repente. Já dura algum tempo nossa aproximação e sinto que ela também está fascinada por mim e possivelmente vamos nos apaixonar.
Hoje ainda não nos beijamos, mas já consigo acariciar suas tranças.

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